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Um cego no Caraça

“Os cientistas dizem que somos feitos de átomos, mas um passarinho me diz que somos feitos de histórias”, disse, com muita sabedoria, o imortal Eduardo Galeano. E é dessa frase que me lembro todas as vezes que falo com o Luís Felipe, garoto inteligente, alegre, falante e curioso. O Felipe tem 13 anos e é cego.

Adora viajar, mas só quando o destino são praias, parques aquáticos ou de diversões, com brinquedos que unem velocidade e altura, ou ainda para algum hotel-fazenda onde possa nadar em rios com cachoeiras e montar cavalos (neste caso, costuma ser guiado por outro cavaleiro à frente, que leva seu animal preso a uma corda). “Se é para ir a algum lugar onde alguém tem de ficar contando o tempo todo como é e eu fico só ouvindo, prefiro ficar em casa mesmo e a pessoa me conta na volta”, explica, rindo.

De brincadeira, já propus a ele algumas viagens “interativas”, mas curiosas, porque sei que adora roteiros incomuns e, de preferência, que envolvam algum risco: mergulhar dentro de gaiolas para ficar bem pertinho de tubarões-brancos (que, às vezes, avançam no cabo que liga a gaiola ao barco); visitar a cidade de Churchill, no Canadá, onde existe uma lei que proíbe que os carros fiquem trancados (!) porque é comum topar com ursos nas ruas e o cidadão tem de ter onde se proteger rapidamente (são 900 moradores e cerca de mil ursos!); e conhecer na Índia o Karni Mata, o chamado Templo dos Ratos, onde os roedores são cultuados e existem aos milhares, espalhados por todos os cantos, nichos e frestas do lugar. Se o turista, por acidente, matar um rato, deve pagar seu peso em ouro ou prata na saída. Felipe sempre ouve os relatos em silêncio, absolutamente fascinado.

Desta vez, disse a ele que havia ido por duas vezes em um intervalo de pouco tempo ao Santuário do Caraça, em Minas Gerais, já sabendo que o que iria impressioná-lo seria mesmo o lobo-guará, que sobe quase todas as noites a longa escadaria da igreja até o adro para comer carne deixada em uma bandeja pelos padres. Dócil, mas arisco, fica ali, muitas vezes macho e fêmea, diante dos visitantes impactados pela cena: um lobo-guará ao vivo, solto, ali pertinho!…

Felipe perguntou tudo e mais um pouco e lá fui eu com as histórias: contei como é o lobo, tamanho, cores da pelagem, sua imponência e a elegância de seus movimentos, o olhar atento sobre os visitantes toda vez que anda em volta da bandeja. Falei dos cachorros-do-mato e da anta que também vêm comer da bandeja e da onça-parda e suas pegadas ao redor do Santuário. Cobras e aranhas? Tem também, felizmente muito mais vistas em fotos no Museu e em vidros no Centro de Visitantes do que ao vivo, pelo menos pelos turistas. E falei da montanha com o perfil de um rosto que dá nome à Serra do Caraça e contei da Prainha, das trilhas pelas quais podemos ir falando da vida até entrar na Cascatinha, na Cascatona, no Banho do Belchior ou do Imperador. E descrevi a famosa obra de Ataíde que está na igreja, “A Última Ceia”, com Judas que parece olhar para nós, não importa de que ponto estejamos observando o quadro. E lembrei da noite em que eu e outros turistas ficamos cantando e tocando violão no adro até quase meia-noite, ao lado do guará comendo e comendo da bandeja, debaixo de um céu esbranquiçado de tantas estrelas. “Você me faz enxergar”, disse o Felipe quando terminei.

Luís Felipe é bom em avaliar relatos e descrições. Está acostumado com audiodescrição. Esse importante recurso de acessibilidade, que vem crescendo cada vez mais no Brasil, nada mais é do que a narração de imagens para quem é cego e é aplicado em filmes, peças de teatro, museus, palestras nas quais são exibidos gráficos, mapas e tabelas, em fotografias, no turismo, em missas, casamentos e até em partos! Em eventos ao vivo, geralmente o processo é igual ao da tradução simultânea: o audiodescritor fica na cabine falando ao microfone e os cegos recebem as informações por meio de fones de ouvido. Já no turismo, por exemplo, a narração das imagens é feita em visitas guiadas. Aliás, o primeiro filme brasileiro com audiodescrição foi Irmãos de Fé, do Padre Marcelo Rossi, em 2005. De lá para cá, a audiodescrição, ou AD, virou uma profissão e leis determinam, por exemplo, a obrigatoriedade do recurso nas emissoras de TV, pena que ainda em pouquíssimas horas semanais.

A técnica adequada permite a compreensão dos principais elementos visuais de uma imagem. Informalmente, alguém pode descrever uma fotografia assim: “É a foto de uma menina bonita e simpática na praia”. O audiodescritor percebe a imagem de forma mais abrangente e vai sempre do geral para o particular, uma visão panorâmica primeiro e os detalhes depois, com o maior número possível de informações, em uma narração sonora, agradável, com linguagem simples e objetiva: “Fotografia colorida e vertical que mostra uma moça sorrindo na praia. Ela é loira, tem cabelos lisos e compridos, usa um biquíni verde, está em pé na areia, com o mar ao fundo em dia de sol”. Empregar a palavra “menina” não deixa claro tratar-se de uma criança ou de uma jovem; e os conceitos de “bonita” e “simpática” são subjetivos.

O Santuário de Aparecida do Norte já realizou missas com audiodescrição e a Sociedade Bíblica do Brasil, em São Paulo, promove eventos com AD que chegam a reunir duzentos cegos! Acredito que a única coisa que não dá para descrever mesmo seja o sentimento que invade o audiodescritor quando vê um cego que pela primeira vez consegue compreender imagens sozinho, com independência, sem o auxílio de um familiar. Foi assim quando, em 2010, ao perguntar a um senhor que não enxerga o que havia achado do filme que eu havia acabado de narrar, ele ficou em silêncio e percebi que estava chorando. Com a voz embargada, procurou e apertou minha mão entre as suas enquanto dizia: “Minha filha…”. Não pôde continuar, tão emocionado estava, e ficamos assim, os dois, por um longo tempo. Ou a reação de um menininho de cinco anos durante um festival de marionetes ao ouvir audiodescrição pela primeira vez também e compreender tudo, em pé de igualdade com os colegas de escola. Com os fones de ouvido, pulava de alegria na cadeira do auditório e repetia tudo o que ouvia aos berros para a mãe, ao lado: “Mamãe, o palhaço está andando de bicicleta! Ele usa blusa branca e calça dourada! Tem cabelo amarelo e nariz vermelho!”. Depois do espetáculo, chorou de emoção ao tocar o palhacinho e a bicicleta no palco. E não houve uma só pessoa em volta que não ficasse com os olhos marejados.

Luís Felipe pede que eu traga a ele uma pelúcia do lobo-guará na próxima viagem ao Caraça. Trago, se tiver. Vi apenas chaveiros com o lobinho de pelúcia, lindos. Mas, rapidamente, ele desiste do pedido: “Sabe, nem precisa trazer nada. Eu quero ir lá um dia. Você vai comigo para descrever tudo na hora do lobo?” Prometo que sim. Agora a curiosidade é minha e pergunto por quê não quer mais a lembrança. “Porque meu pai sempre me diz que as melhores coisas da vida não são coisas. E eu também acho”. A avó do Felipe, dona Maria Eugênia, vem agradecer: “Você não tem ideia do quanto ensina a meu neto”. A ligação pelo skype cai antes que eu possa responder. Não, dona Maria Eugênia. A senhora é quem não tem ideia do quanto eu aprendo com ele.

Lucia Maria: jornalista, locutora e audiodescritora roteirista/narradora

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