Este é o último “mistério” que resolvi apresentar aos leitores amigos do Caraça. Mistério é o que não sei explicar, quando acontece. Há fatos extraordinários, que nos surpreendem cada dia. Por exemplo, no ano passado, quando demos pela coisa, já havia três buracos perigosos na barragem do Tanque Grande. Tinham crescido umas árvores naquela terra vermelha e um dia acabaram morrendo. E onde houvera raízes, as águas foram entrando e levando a areia, a terra, as pedrinhas… Ficamos apavorados (e olhem que ainda não havia acontecido nada em Bento Rodrigues…).
Pedimos ajuda ao Departamento de Estradas de Rodagem que nos enviou técnicos, um tanto do material disponível e muito apoio, facilitando contatos com os técnicos que nos poderiam ajudar, as empresas onde comprar os apetrechos necessários, etc. Começamos a esvaziar o Tanque Grande, para diminuir o peso da água na barragem e os resultados amargos, caso houvesse um colapso da estrutura, alguma coisa inimaginável.
Foi triste ver as margens secando, toda aquela terra nua, cujas ervas e cujos capins as tilápias tinham comido. Mas foi também muito instrutivo percorrer as margens secas, fotografando os excrementos e os rastros dos animais que iam beber, e seus ninhos (as tilápias foram fazendo outros ninhos mais em baixo, nas beiras, cada dia diferentes, das águas).
Pois foi numa de minhas primeiras visitas que vi, na beirinha da água, aquela meia dentadura, a prótese de cima… Para este mistério, não achei saídas.
Quem perdeu a dentadura no Tanque Grande? Foi logo dentro da água ou alguém a achou por ali e a jogou no fundo? Como é que alguém pode perder uma dentadura assim? Não notou? Não deu pela falta? Não teria sabido como tirar da água? As correntes da água a levaram para longe de onde o dono ou a dona a perdeu? Alguém fazia um piquenique, dormiu sua sesta, deixando a dentadura num guardanapo e veio um quati e roubou?
Tenho uma hipótese, mas não sei se vale a pena contar…
Entre as antigas “Sampaias” do Caraça, aquelas mulheres de idade e de valor incomparável que viviam no santuário, assistidas pela comunidade a que retribuíam com seus serviços humildes, benfeitoras escondidas de centenas de alunos, cujas batinas lavavam, cujas meias remendavam, cujas refeições ajudavam a preparar, – entre as Sampaias, eu dizia, havia a Virgínia.
Negra, muito inteligente, de voz poderosa e gestos ameaçadores, de memória invejável (sabia rezas de horas inteiras, que desfiava comendo sílabas e palavras inteiras, na pressa de dizer tudo para Deus e seus Santos…), a Virgínia tinha seus oitenta e muitos anos quando algum amigo de Belo Horizonte ou São Paulo, notando como andava banguela e devia sofrer para amassar na boca as coisas que não podia nem devia engolir inteiras, lhe ofereceu uma dentadura de qualidade.
Acho que aceitou pela saudade de quando mastigava seu fumo de rolo, comia seu torresminho de porco, dava um jeito nas peras duras da horta. E aceitou.
Mas depois a vi de novo, sem nenhuma dentadura. Eu perguntei: “Uê, Virgínia, cadê a dentadura que começou a usar? Não se acostumou? Machucava a gengiva?”
Ela foi franca e direta ao assunto: “Meu nego, quando pus a primeira parte” (a de cima, como a do Tanque…), “fiquei tão bonita que fiquei com medo de os homens começarem a me dar cantadas para eu casar com eles”. Juro que foi isso mesmo que ela disse.
Então, será que foi ela? Fizera a Deus a promessa de viver e morrer no santuário, ao lado de Nossa Senhora e do Senhor Jesus, dedicando suas forças ao trabalho de capinar a ladeira das Sampaias, a lavar as centenas de batinas dos seminaristas, a cuidar das caixas de abelhas que nos davam ótimo mel e lhe davam cera para as velas do Santíssimo. Será que sacrificou o gosto, para permanecer naquela vida de sacrifício e doação?
Se nenhum leitor desta página tiver notícia confiável do dono ou dona da dentadura, só vou ficar sabendo no fim dos tempos, depois da ressurreição da carne, quando encontrar a Virgínia (se a reconhecer!), pois uma vez me descreveu que ficaria, depois da ressurreição final, com cabelo claro e comprido (não mais pixaim) caindo pelos ombros, ela bonita, faceira e luminosa diante de Deus.
Padre Lauro Palú, C.M.