Quando estudei no Caraça, em minha adolescência, vindo do Paraná, de uma região de planalto, sem muitos raios, sem montanhas à vista, as noites de tempestade para mim eram terríveis. A tempestade chegava com ventos violentos, que batiam as janelas, molhavam a primeira fila de camas e derrubavam os tripés com as bacias onde lavaríamos a cara, quando nos acordassem de manhã.
Uma noite de trovões e raios no Caraça é inesquecível. O medo nos fazia voltar ao tempo das cavernas, quando os homens primitivos não sabiam o que era uma tempestade, por que elas apareciam, o que queriam dizer aqueles trovões, se eram voz de algum deus ou de um monstro. Como segurar o vento? Como impedir que as palmeiras se quebrassem, caindo sobre nós? Quando o mundo iria ser de novo tranquilo, quando íamos poder novamente ver as nuvens, as estrelas, a lua branca, sem o medo da morte, dos raios, do diabo?
Hoje, sei que as chuvas normalmente vêm do lado da Boa Vista, sobem pelo vale por onde também subíamos de carro ou caminhão. Dos outros lados, em geral não chove, nunca choveu. Na realidade, dos lados da Bocaina podem vir tempestades enormes, mas chove mais no Campo da Mistura, na Pedra da Paciência, na própria Bocaina, no Bosque do Padre Leite, mas não chega até à casa o aguaceiro tremendo.
Do lado da Canjerana também chove e vêm tempestades assustadoras, mas ninguém precisa correr, porque não chegam à casa. Param no Tanque Grande, esvaziam-se nas matas do caminho para o Campo de Fora. O bonito, quando a chuvona vem da Canjerana, é ficar à janela do quarto ou na porta da igreja, melhor ainda se for sentado numa cadeira ou nos degraus, e ficar vendo o povo que chega correndo para escapar da chuva ou já chega ensopado e esbaforido, às vezes aterrorizados com a chuva.
Do lado da Carapuça também não chega chuva, normalmente. Mas me lembro de uma tromba d’água que veio de lá, no dia 19 de março de 1954, e não foi só água. Foi chuva de pedras, um granizo miúdo que cobriu bem uns vinte centímetros de altura todo o terreno do Caraça, a colina do Calvário, nossos pátios, toda a extensão que a vista via.
Nessas tempestades, se de dia já era terrível, imagine-se à noite, com os raios quebrando árvores, arrebentando encostas, os trovões caindo maciços do céu, despencando do Inficionado e rolando até o Pico da Conceição, com os ecos voltando ainda mais próximos e mais fortes, sobre nós, tão miúdos, tão miseráveis, impotentes, mortos de medo.
Quando estalavam os raios, depois daquele clarão que nos salvava, pois dava tempo de perceber que não caíra em cima de nós, nos meses de setembro a fevereiro, os ares de toda a bacia do Caraça ficavam cheios de bandos de milhares de taperás, os andorinhões que nidificam nas fendas e grutas do Inficionado.
Naquele dia em que o Padre professor de português dera como tema de redação, por exemplo, a chuva ou a tempestade ou o medo ou o fim do mundo, eu estava no salão de estudos, assustado com os raios e trovões e sentindo que os gritos desesperados das taperás no céu eram o meu medo feito bicho, meu desespero feito tema de observação e descrição de escola… E comecei a escrever um texto épico, que falava de fim de mundo, de cataclismo, sei lá mais de quê. E cada vez que o raio fazia todos os andorinhões piarem desesperados, eu tinha mais uma ideia, uma metáfora nova, queria ouvir mais um trovão, imaginar o voo vertiginoso das aves no céu, entre as nuvens baixas ameaçadoras.
Ficava esperando o próximo raio.
E nesse dia, por isso, nessa noite, perdi o medo, para sempre.
Pe. Lauro Palú, C.M.