Drummond, o Caraça e o Mestre Ataíde
No início dos anos 70, a “Ceia” de Ataíde foi emprestada ao Governo de Minas para a inauguração do Palácio das Artes em Belo Horizonte-MG. Do Palácio das Artes, a valiosa tela foi para o Palácio da Liberdade, sede do Governo Estadual. Em 1975-1976, com a construção da estrada asfaltada para o Caraça, começou-se a ventilar a hipótese de o Governo de Minas não mais devolver ao Santuário do Caraça a tela do Mestre Ataíde, acertando, assim, com os Padres do Caraça os gastos com o asfalto.
O poeta de Itabira-MG, Carlos Drummond de Andrade, admirador e conhecedor do Caraça, num importante jornal do Rio de Janeiro, publicou uma poesia noticiando o fato.
Carlos Drummond de Andrade
(26/02/1976)
ATAÍDE ÀVENDA?
– Quanto quer pelo Ataíde?
fala ao padre lazarista o emissário paulista de olhar guloso na “Ceia” que na aguda serrania ilumina qual candeia as ruínas do Caraça. Dou duzentos, dou quinhentos, oitocentos mil cruzeiros por esse quadro… – Não, não! – Já que estou com a mão na massa, reforço meus argumentos, ofereço-lhe um milhão. Pintura aqui nesses altos, na friúra desolada destas rocas, destes longes, não tem sentido nem vez. Só peregrinos e monges podem curti-la. Melhor é levá-la quanto antes para o conforto envolvente do Palácio Bandeirantes. – Já disse: não. – Ah, desculpe, prefere que se desfaça a obra de Mestre Manuel no desgaste que lhe inflige o dente roaz do Tempo em sua faina cruel? Quer ver Cristo desbotado, carcomido, atomizado, mancha pálida no pano? Seus bem-amados discípulos, sua mesa, seu pão ázimo, sua colação simbólica, sua postura litúrgica, e sua mensagem mística, sumindo, pasto de traça, de cupim e de pobreza, neste sem-fim do Caraça? – Deus é grande… – Deus ajuda a quem, esperto, madruga. E daí, meu padre, atente que milagre brasileiro anda bastante vasqueiro. Pegue logo esse dinheiro e com ele faça obras, obras, obras e mais obras que a casa do Irmão Lourenço está pedindo, e que, feitas, serão atrativo imenso à multidão de turistas. Bote piscina, playground, cassino – um “Monte Cassino”, bote som sofisticado com Rachel Welch e quejandas bailando pelas varandas! |
– Jamais… – Jamais? Que pecado,
recusar a minha oferta! Eis que outro sacerdote, de mansinho e de oiça alerta, já sonhando com um caixote só de notas de quinhentos abarrotando a arca murcha da magra comunidade, puxa o outro pela manga, sussurra-lhe: – É bom negócio. Deus decerto não se zanga, se vige a necessidade. Os dois discutem: – Não, não. – Ora essa, meu irmão. Vai-se a pintura, mas fica a nossa vida segura. Já se criam dois partidos entre os padres pressionados e já novos compradores em enxames voadores e propostas tentadoras ferem o doce silêncio em que, à tarde, ressoa a melodia dos poemas de Henriqueta Lisboa sobre a vívida montanha. Vende, não vende. Vendemos? Que vale ter Ataíde e não ter teto e parede? Ser um sacrário de arte, a mais pura arte mineira, orgulho do nosso Estado e da alma brasileira, sem ter como restaurar a velha casa de ensino onde ensinamos a amar as criações do passado? Debatem os lazaristas o grave dilema, enquanto Manuel da Costa Ataíde e sua tela, suprema esperança de resgate da indigência caracense, viram tema de comércio. Corre, corre, Aureliano, vai, Conselho de Cultura, depressa, Assembleia, vai, salva os padres agonaidos da prontidão que os achaca, e salvando-os, preservando-os da mercantil ameaça, salva a arte, salva a glória, salva o máximo tesouro, a riqueza que não passa: Cristo-Ceia do Caraça! |