A religião católica é todo o contrário da alienação que caracteriza os grupos e movimentos ditos religiosos, que pensam que rezar é deixar este mundo e tentar subir para Deus, como se ele não estivesse presente e atuante em tudo o que somos, no dia a dia. Assim, é educativo e transformador falar em CORPO de Deus, porque, em geral, se pensa em Deus como um espírito perfeitíssimo, criador do céu e da terra e morador inatingível desses céus azuis que nos cobrem.
A festa do Corpo de Deus, em latim Corpus Christi, foi criada no século 13, pelo Papa Urbano IV, em 8 de setembro de 1264. O ofício litúrgico e suas orações foram escritos por Santo Tomás de Aquino e se cantam até hoje. A festa é celebrada numa quinta-feira, dia em que Cristo instituiu a Eucaristia na Santa Ceia. A data cai 60 dias depois da Páscoa. Fazem-se procissões muito significativas, nas cidades e distritos, onde há padres residentes ou suficientes.
O povo participa, em geral, com grande devoção, desde alguns dias antes, quando começam os preparativos para enfeitar as ruas e os lugares onde haverá os altares e as bênçãos do Santíssimo Sacramento. As cidades enfeitam ruas e praças, as famílias enfeitam as casas, especialmente as janelas da fachada, onde estendem colchas, toalhas, cortinas e preciosos tecidos coloridos, que completam o esplendor em que são transformadas as ruas por onde passará a procissão. Conforme os lugares, são quilômetros de ruas transformados em suntuosos tapetes, com desenhos de temas religiosos, sobretudo à própria hóstia consagrada, que é levada em procissão pelo Padre ou Bispo, numa custódia, e assim exposta à adoração dos fiéis. Tais “tapetes” são feitos com diversos materiais característicos da cidade ou do distrito. Para desenhar os vários temas, usam-se papéis picados, sementes, areia, terras de várias cores, cascas picadas de laranja e limão, cascas de ovo pintadas e quebradas, raspas de couro e de plásticos coloridos, tudo o que a imaginação e a atenção das pessoas sentem que pode enfeitar o chão e a alma da gente (certas folhas exalam cheiros muito gostosos quando pisadas ou secando ao sol).
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No Caraça, nos tempos do Colégio, até 1912, e do Seminário, até 1968, o dia era marcado pela grande procissão e pelos preparativos. Alguns dias antes, uma turma subia à Gruta de Nossa Senhora de Lourdes (depois da capelinha), de onde trazíamos sacos com muitos quilos daquela areia branquíssima que fazíamos escorrer das paredes (dizíamos que era mármore em formação, que se esfarelava quando batíamos nas paredes da gruta com pedaços de ferro). O branco servia para desenhar a hóstia consagrada e qualquer outro enfeite, sendo pintada com suco de beterraba e cenoura, café e anilinas, etc.
Outros grupos iam às matas, sobretudo ao Tanque Grande, para trazer cachadas de orquídeas, touceiras inteiras de cipós imbés, ramas e ramas da trepadeira-de-são-joão, galhadas soberbas de quaresmeira ou fedegoso, algum quartzo ou cristal que achássemos nos caminhos ou procurássemos onde o sabíamos. Nisso, esses dias e essas aventuras de devoção e carinho com Deus só se comparavam com a preparação do Natal, quando íamos aos bosques e matas buscar os enfeites para o presépio maravilhoso que enfeitiçou nossa infância, guiou nossa adolescência e ilumina até hoje nossa vida.
A procissão saía da igreja neogótica, toda enfeitada, descia a escadaria, depois a rampa das Sampaias, ia pela estrada até o nosso Banho (hoje dito Banho do Imperador…), contornava o Calvário, chegava onde hoje está a cantina, descia para o estacionamento onde havíamos desenhado a grande custódia e seus anjos adoradores e subia de novo para a igreja. (A sensação de ver o padre pisando naquele desenho tão amorosamente traçado no pátio!). Havia quatro ou cinco altares, em paradas estratégicas, onde o padre nos abençoava com o Santíssimo Sacramento. Todo o nosso ambiente ficava assim santificado pelos passos de Cristo em nossos próprios caminhos.
É exatamente isto que se deseja com a Procissão de Corpus Christi nas cidades: Que Deus passe por nossas ruas, veja nossos sofrimentos, escute o choro das crianças, veja o abandono e a solidão dos idosos, alegre o sofrimento dos doentes às janelas ou nas cadeiras da calçada, abençoe os casais de namorados, as lojas e oficinas e seus trabalhadores, as cozinheiras que enxugam a mão no avental e se benzem felizes por Deus existir e passar ali na casa delas…
Meu voto final, neste texto: Que Deus passe em nossas ruas, nas avenidas, no eixo monumental de Brasília, na arena do Mineirinho, nas praias do Rio de Janeiro, nas calçadas marcadas pelos trios elétricos do Nordeste, mas sobretudo mesmo ali, no eixo monumental de Brasília, onde naufraga nossa vergonha nacional e onde quer nascer nossa esperança.
Padre Lauro Palú, C.M.