“Nossa, você vai viajar sozinha pra esse lugar? Não tem medo?”; ou: “Mulher viajando sozinha… Sei!”; foram alguns dos comentários que ouvi quando decidi ir ao Caraça passar uma semana.
Lembrava vagamente desse nome dos obrigatórios livros de literatura brasileira da escola, quando um pai autoritário ameaçava o filho desobediente: “Te meto no Caraça!”. Não sabia, na época, o que era o Caraça e só fiquei sabendo mesmo ao entrar por acaso no site do Santuário, em julho deste 2016.
A decisão de viajar foi imediata: alguma coisa ali me atraiu, muito além das paisagens exuberantes ou da possibilidade de ver de perto um lobo-guará. Fiz a reserva e consegui somente para setembro!
Ficaram em São Paulo trabalho, marido, mãe idosa, dois cachorros e o final de um longo e difícil período de perdas e lutas, durante o qual viajar era só um sonho.
A primeira imagem que o Caraça parece provocar em muita gente é a de um lugar rígido, com muitas regras, horários e padres citando trechos da Bíblia e fiscalizando os hóspedes. Nada disso. Se o senso comum acredita que relaxamento e diversão precisam de barulho, tumulto, consumo e tecnologia 24 horas por dia, o Caraça vai na contramão disso tudo e oferece essa felicidade simples que não se reconhece à primeira vista. Uma felicidade quase invisível, que não ostenta nem provoca inveja em ninguém (e isso só vê quem tem olhos de ver).
Bom, de manhã, lá estava eu, fazendo meu próprio pão com ovo em um fogão a lenha, acompanhado de suco verde, café, leite, bolos caseiros, geleias e pães de queijo deliciosos. No almoço e no jantar, comida caseira variada e da boa, e quem, como eu, não passa sem um docinho, vai se acabar com doce de leite, de abóbora ou arroz-doce, e ainda passar na lojinha para levar alguns pra casa…
No Caraça há missa todos os dias e eu me vi participando delas todos os dias também. Missa leve, com alegria e bom humor, uma pequena dose diária de reflexão espiritual, de um encontro que costuma se perder em meio a tantas distrações da vida.
O guará, então, é um espetáculo à parte e nenhum relato vai ser fiel à experiência de vê-lo ao vivo, bem de pertinho, subindo a escadaria da igreja, à noite, imponente e elegante – tive a sorte de vê-lo nos quatro dias de hospedagem. Impactante. Emocionante.
Então, a vida no Caraça é comer, rezar e… esperar o lobo-guará? É isso também, além da paisagem deslumbrante, das trilhas e cachoeiras, da variedade enorme de pássaros, dos esquilos, antas e cachorros do mato, da vista linda da Ala do Santuário – experimente contemplar o amanhecer de seu quarto, naquele momento raro e precioso do silêncio que permite ouvir Deus. A gente fala e pensa demais e não consegue escutar ninguém nunca. Nosso pensamento é muito limitado para alcançar coisas que só são compreendidas quando são sentidas.
Dizem que não há um caminho para a paz: a paz é o caminho. Eu digo que o Caraça é, sim, desses inspiradores caminhos a percorrer que facilitam o encontro com Deus, ou consigo mesmo, ou como cada um queira chamar esse cantinho sagrado que habita cada um de nós e com que, quando acessamos, entendemos finalmente o significado das palavras antes vazias das religiões.
Gratidão e alegria. Esses são meus sentimentos na volta do Santuário. Gratidão aos funcionários atenciosos, aos padres Wilson e Lauro (obrigada, padre Lauro, especialmente pela conversa sobre a difícil equação “ativismo por direitos dos excluídos x assistencialismo”: fui em busca exatamente das palavras simples e sábias que sabia que ia ouvir). Alegria pelo encontro animado com outros viajantes – o Caraça tem gente de todo tipo, de todos os lugares do mundo, prato cheio para quem, como eu, adora uma conversa e foi embora nos mais variados temas que me apresentavam, das espécies de pássaros fotografadas pelo alemão ornitólogo ao programa de TV, passando por dicas de montanhismo, a máfia dos planos de saúde no país, práticas budistas e a perigosa discussão do momento atual da política brasileira. E muitas delas muito bem acompanhadas de uma cerveja, um chopp ou um vinho, que deixam a coisa toda ainda melhor, né, minha gente?
Até muito breve, Caraça. Recebi muito nesta viagem. Deixo aqui a todos uma pequena retribuição em forma de desejos de paz, luz, amor.
Lúcia Maria – 25/9/2016