O Calvário, onde se ergueu a Cruz redentora de Jesus Cristo, é um lugar sacratíssimo, em Jerusalém, que está hoje em situação de guerra permanente, extremamente pesada, por causa das violências de um povo contra outro, apesar da presença constante de fiéis do mundo inteiro, da carga espiritual que representam as orações, os sacrifícios, os votos, os sacrifícios de toda sorte dos milhões de peregrinos, da fé, das lágrimas de emoção ou de dor. Pelo seu valor simbólico, pela realidade transformadora do mundo que significou o sacrifício de Cristo na Sexta-Feira Santa, o Calvário é reproduzido por toda parte, como espaço de solidariedade, pessoas acompanhando Jesus passo a passo, fazendo um caminho de mudança radical de vida para quem é tocado pela graça de Deus e assume sua vida, em comunhão com os que sofrem de todo tipo de tortura e martírio.
O Calvário do Caraça é a colina ao lado esquerdo da casa, cujos caminhos se abrem para os turistas e hóspedes que vão ao seu belvedere apreciar a beleza da paisagem e sobretudo para os grupos de cristãos que desejam acompanhar Cristo nos seus últimos passos, na sua paixão e morte. Também recebe o peregrino solitário, a mãe sofrida, o jovem angustiado, o doente que acabou de receber a má notícia. Recebe a Família inteira, na aflição de pedir pelos seus doentes ou pelos presos e condenados. Recebe o artista, o músico, o escultor, o dançarino, o músico, o educador, o poeta, e caminha com ele, rumo à morte de Cristo e a seus mistérios de perdão, reconciliação, conversão e votos. A Via Sacra que celebramos na manhã da Sexta-Feira Santa é um caminho de solidariedade com Cristo.
Quando aprendi a rezar o rosário, ainda menino, aqui no Caraça, nós contemplávamos os mistérios gozosos, depois os dolorosos e enfim os gloriosos da vida de Cristo, de Nossa Senhora, da Igreja e da Humanidade. Para cada mistério enunciávamos um fruto espiritual que desejávamos conseguir com as orações daquele mistério. Havia verdadeiras barbaridades teológicas e pastorais, no modo de dizer certas orações. Por exemplo, anunciando o terceiro mistério doloroso, dizíamos a coroação de espinhos, fruto a humildade… Eu rezei isso 35 anos, até que, um dia, rezando sozinho, me bateu a dúvida: a humildade, quase como resignação e desistência nas lutas pela própria vida, pela própria dignidade, ou a humilhação a que Cristo é reduzido, ele já condenado à morte e ainda assim maltratado, ferido, insultado, humilhação extrema num corpo já depauperado pela sangria na flagelação, depois dos sofrimentos do suor de sangue no Jardim das Oliveiras…
Então, a Via Sacra deixa de ser uma contemplação sentimental dos sofrimentos de Cristo e passa a ser uma caminhada em grupo de gente que luta e sofre, mas espera e canta, constrói e celebra a vida, a dignidade, a justiça, o compromisso fraterno, a tarefa de fazer humano o nosso mundo. Somos chamados a ver não só o Cristo Crucificado, aprendemos a ver os Povos Crucificados, nos continentes perdidos do mundo e no nosso próprio país.
Este modo de ver a Via sacra como passeata se soma à procissão dos Ramos, no Domingo antes da Paixão. E em cada uma dessas ocasiões, sinto que é preciso falar assim ao povo de Deus, para que ocupemos nossos lugares na sociedade, não só em nossa casa, nossa família, nosso emprego, mas também na escola de nossos filhos, no sindicato, nas chamadas públicas, nos panelaços, na fila do dia da eleição, quando ainda podemos sentir, com os outros, os rumos que precisamos dar à Coisa Pública, à República, hoje tão desfigurada pelos políticos que pensam apenas no dinheiro que lhe rendem as sucessivas votações, aos contínuos conchavos para cederem seus votos ao patrão do momento, venderem sua alma por um par de sandálias, como gritava o profeta ainda antes de Cristo…
Na paz da tarde, quando o sol doura e colore de um vermelho-escuro nossas montanhas mais altas e a colina do Calvário, andar suas trilhas da primeira à décima quarta estação, deixa de ser uma meditação doída, passa a ser uma provocação forte; já não é uma oração para consolo da gente, mas é uma chamada a todos, para a reação cristã e cidadã. Por isto, nas Comunidades pelo mundo afora, surgiu a consciência de que a Via Sacra não pode terminar ali, aos pés do Cristo morto, nem ao lado do túmulo onde o depositaram… Nosso Deus não é um Senhor morto, sepultado, apodrecido, acabado. Hoje celebramos uma décima quinta estação, de joelhos diante do sacrário, onde adoramos seu Corpo Sacratíssimo ressuscitado, pão de nossa fé, alimento de nossa caminhada, guia de nossos passos e nossos protestos, de nossas reivindicações e nossos trabalhos comunitários transformadores.
Dedico esta página ao Pe. Paulo Faria que restaurou caprichadamente as 14 estações da Via Sacra e suas molduras.
Padre Lauro Palú, C.M.