O Caraça não é apenas um belíssimo conjunto arquitetônico escondido num desvão da cadeia do espinhaço, aninhado no centro d’um interessante mosaico vegetacional onde o Cerrado penetra a Mata Atlântica numa sensual manifestação de pertencimento e de divina simbiose. O Caraça é também um museu em cujo acervo é possível encontrar os mais variados cenários, lugares, objetos e peças de imensurável valor histórico. Lá você encontra livros únicos, telas, vitrais, peculiares relíquias religiosas e o órgão, este com mais de dois séculos encantando anônimos e famosos.
Hoje muito mais que apenas um instrumento musical o órgão é uma relíquia muito bem cuidada e talvez por isso o tempo não tenha dissipado sua aura de importância, mistérios e lendas como a que diz ter sido ele construído apenas com um pequeno canivete.
“Não se concebe uma igreja sem o seu órgão. Depois do altar é ele a peça necessária na composição de uma igreja” diz o Pe. Tobias Zico CM em seu livro Caraça – Sua igreja e Outras Construções. O Santuário de Nossa Senhora Mãe dos Homens não foge a essa regra e tem hoje um instrumento digno da grandiosidade e da tradição do Caraça.
Pelo ”Estatuto da Confraria de Nossa Senhora Mãe dos Homens”, pelas anotações do naturalista francês Saint Hilaire, pelo diário do Imperador Dom Pedro II, tem-se registro da existência de um pequeno órgão, mandado vir de Portugal pelo Ir. Lourenço. Em 1806, Antônio Luiz Pereira, Ouvidor da Câmara de Sabará, em relatório enviado ao Rei de Portugal diz ter visto “no coro da pequenina capela barroca” um piano Forte e um pequeno órgão, tocados por um negro e que enchia de harmonia o lugar. Saint Hilaire menciona-os, ainda, na tribuna da capela, porém, calados e tristes.
A Construção do Órgão:
O órgão atual, primeiro construído em Minas, é fruto da genialidade de um português caracense: o Pe. Luís Gonzaga Boavida. Jovem de habilidades bem conhecidas, o Pe. Boavida era notável nas artes da marcenaria e da música, compondo inclusive o “Método de Música Vocal”, um manual de aula para os alunos. O Padre Boavida tinha ainda muitas outras atribuições: era Missionário, ecônomo da Casa, professor de música. Não se conhece a fonte dos seus conhecimentos de organaria e é certo que ele fez somente este instrumento, para uso do Caraça. Ao chegar ao Caraça, em 1863, imediatamente, pôs-se a consertar o velho órgão português até então jogado a um canto do coro da capela Barroca.
Em 1863, auxiliado pelo Pe. José Dorme e utilizando madeiras do Caraça, inicia a construção, de forma artesanal do “órgão que está na igreja do Caraça, como um delicado ninho na frondosa copa das colunas góticas”, como verseja em prosa o Pe. Tobias CM.
Das matas que cercam o Caraça são o Cedro Vermelho do someiro, madeira que se comporta bem diante das oscilações térmicas característica das regiões de montanha e resiste bem ao ataque de insetos xilófagos tão comuns nesta região de Minas; o Pinheiro dos canudos e dois tipos de jacarandás, o vermelho e o preto que ornam a sua fachada que copia, mesmo de forma discorde, o mesmo estilo gótico do santuário que lhe serve de abrigo e empresta maravilhoso contraste à arquitetura do instrumento. O Imperador Dom Pedro II, quando se sua visita ao Caraça, em 1881, quis ver o trabalho de construção do órgão. Mesmo estando o Pe. Boavida ausente cumprindo sua vocação missionária em outras terras retirou-se o Monarca em meio ao jantar, dirigindo-se à oficina (onde hoje é a cantina) e admirou aí a obra engenhosa do “talentoso sacerdote” ainda na fase de montagem da complicada equação que é a disposição de flautas e registros no âmago do instrumento. Por essa época a construção do órgão, apesar de inacabada, já se fazia bastante adiantada.
O aluno Arthur de Oliveira, em 1869, em carta ao seu pai descreve assim o construto do órgão: “O Pe. Luiz é um moço de uma habilidade extraordinária; improvisa instrumentos de música e até já fez um órgão; há pouco, pedindo-lhe eu para me ensinar xadrez, trouxe um por ele feito, tão bem feito que fiquei surpreendido”.
Admirável, não pelo tamanho, mas por seu engenho e arte, o instrumento de rara unidade harmônica, é ainda mais admirável para os organistas, pelo engenhoso mecanismo que permite a quem o toca ter pleno contato visual com o coro o que supõe dois movimentos e quatro direções diferentes.
O Órgão:
O órgão do Caraça tem 628 tubos e não 700, como se encontra em vários registros. Pode-se facilmente comprovar observando a disposição dos tubos que estão assim distribuídos: cinco jogos franceses – 305: Dois registros do pedal – 48: Dois registros (de madeira caracence) – 122: Dois registros antigos = mistura duas filas – 122: Voz celeste -31 (apenas discante).
O Pe. Luiz Gonzaga Boavida utilizou antigos tubos, do antigo órgão que já havia na Casa, cujo instrumento ele já conhecia bem, pois o restaurara anos antes; acrescentou outros, cuja procedência não está documentada, mas com características francesas; e somou a esses os tubos de madeira que ele mesmo produziu. O resultado sonoro é admirável, dada a diversidade do material.
Segundo José Carlos Rigatto (contratado pelo IEPHA, em 1974 para uma tentativa frustrada de reforma do órgão) existe no instrumento 153 flautas que possivelmente foram aproveitadas do antigo órgão que o Ir. Lourenço mandou vir de Portugal e que Saint Hilaire viu, no cantinho do coro, então calado e triste. Para ele estas flautas são características do século XVIII.
O ar que sopra as flautas é produzido por um grande fole. O fole braçal, saudosa e doloridamente lembrado por vários ex-alunos, foi eletrificado em 1974 e em 2005 foi instalado nele um sistema italiano que também se utiliza de motor elétrico. O ar produzido é introduzido numa Caixa de madeira (someiro) e distribuído aos 628 tubos gerando os sons maravilhosos paridos hoje pela habilidade do organista, Maestro Lucas Raposo.
Desde 27 de maio de 1883, quando foi inaugurado junto com a igreja gótica, o órgão passou por numerosas intervenções, muitas delas tão desastrosas que só não o calaram e decretaram sua morte definitiva e prematura pela proteção de Nossa Senhora Mãe dos Homens e pela determinação do Pe. Tobias Zico CM e dos amigos Lucas Raposo e Ricardo Clérice.
O órgão passou ao longo de sua vida por várias intervenções quer seja para limpeza e manutenção, quer seja para afinação. A primeira delas ocorreu em 1920, por época da celebração do primeiro centenário do Colégio. A outra em 1949, apenas para higienização, preparou o instrumento para as gravações das cerimônias litúrgicas do Filme “Caraça, Porta do Céu”. Acredita-se que nesta época o órgão foi apenas “figurante”, pois, o som que se ouve no filme seguramente é de um harmônio e não do órgão do Pe. Boavida, como assegura o maestro Lucas Raposo. Quando se fala em história do “Órgão do Caraça” hoje, autoridade maior no assunto é, sem dúvida, o Maestro Lucas Raposo.
Apesar de fracassada, a intervenção do organeiro Rigatto, em 1974, é a que tem registros mais fartos, mesmo que às vezes superficiais. Em suas anotações ele diz: “encontrei (…) uns pedaços de papéis com especificações sobre o órgão, impresso (sic) em francês”. Estes “papéis”, durante a pesquisa nos arquivos do Caraça e do IEPHA não foram encontrados. Era a possibilidade de descobrir um pouco do DNA do instrumento e poderiam trazer luz ao nascimento do órgão e clarear um pouco mais a origem dos tubos franceses.
Em 1984, movido apenas pela curiosidade em conhecer um instrumento raro e famoso, do qual tinha apenas notícia de sua existência, chega ao Caraça, pedalando uma bicicleta, o organista e maestro Lucas Raposo. “O que mais me surpreendeu naquela primeira visita foi encontrar o órgão praticamente morto”, diz Raposo.
A Restauração:
“O único caminho que se abria”, continua o Maestro Raposo, “era verificar a possibilidade de restaurá-lo. A situação em que se encontrava não permitia nem mesmo experimentar-lhe o som. O fole estava debaixo de grande quantidade de tijolos embrulhados em jornal para regulação do peso. A válvula mestra, invertida, não se abria quando deveria abrir, deixando passar só um pouquinho do ar da ventoinha. O sistema motor/ ventoinha, quando ligado, trepidava tanto sobre o assoalho que o ruído dominava o ambiente inclusive do santuário. Os poucos registros que podiam ser acionados produziam o zumbido de muitos tubos soando ao mesmo tempo. Outros registros estavam emperrados e um dos puxadores saiu na minha mão quando tentei acioná-lo. A maioria das teclas do manual estava arriada, revelando as válvulas internas soltas. O local onde se encontra o órgão se encontrava, pela falta de uso, abandonado e sujo. Era, então, um órgão morto” arremata o organista Lucas Raposo. (Essa descrição foi divulgada nas reportagens sobre os órgãos publicadas na Revista Minas Gerais, em 1991).
“A providencia tomada”, confessa o maestro, “foi solicitar uma visita do organeiro Ricardo Clerice, de São Paulo, que, após vistoriar o instrumento, apresentou ao Pe. Tobias CM um orçamento e uma proposta de restauração”. O diligente diretor do Caraça pôs-se então a buscar os recursos necessários para executá-la. Nossa Senhora Mãe dos Homens, mais uma vez se fazia presente e colocava, naquele momento, no caminho do Caraça as pessoas certas para viabilizarem, não a restauração do órgão, mas uma intervenção cirúrgica, capaz de, por milagre de Deus e perícia do organeiro, ressuscitá-lo.
Os recursos vieram de uma maneira inusitada e quase fortuita. Em 1974, o governador Tancredo Neves foi ao Caraça, acompanhado de grande séqüito, inclusive de vastíssima comitiva do MDB de Santa Bárbara, para lançar os projetos de reconstrução da ala incendiada e do antigo colégio. O prefeito Eustáquio Januário Ferreira, de Santa Bárbara, município em que se localizava o Santuário, compareceu acompanhado também de grande comitiva. Mas com Eustáquio era de partido de oposição ao governo estadual sua presença foi ignorada na solenidade. Não só o Prefeito ficou irritado, como a maioria dos presentes se indignou com a atitude do cerimonial do Governo e se retirou do recinto. Dias depois, o jornal A Província Regional, de Santa Bárbara, com circulação na região do Caraça, publicou matéria denunciando e lamentando o fato. Mas o prefeito de Santa Bárbara, numa demonstração de grandeza e de genuína mineiridade disse ao Pe. Tobias que, apesar de tudo, iria participar de todos os esforços em benefício do Caraça.
Esta foi a senha. A oportunidade que Pe. Tobias encontrou de colocar nas mãos da pessoa certa, o projeto de restauração do órgão. A Câmara Municipal de Santa Bárbara, então capitaneada pelo Vereador José Hosken, de Catas Altas, também indignada com o incidente do Caraça, votou e aprovou, em regime de urgência a verba.
Os serviços do organeiro Ricardo Clérice começaram em junho de 1985, sem outros intermediadores senão a própria direção do Caraça.
Com pouco tempo ficou claro que havia a fazer muito além do previsto. Primeiro foram feitos os serviços de urgência. Imediatamente após iniciou-se a reforma do novo sistema motor / ventoinha e de todos os componentes mecânicos de registro e teclado. O técnico optou pela criação de um labirinto silenciador para evitar as vibrações do motor transmitidas ao fole, (este um problema que desafiou à exaustão a persistência e a paciência do organeiro). As canaletas de cada nota, devido à água de chuva que atingira o órgão, estavam deixando passar o ar adjacente, produzindo “clusters” de sons em cada tecla tocada. Esta seria a causa mais provável da deterioração de componentes internos, principalmente o couro de vedação nas canaletas.
O problema persistiu em sucessivas montagens e desmontagens dos tubos no someiro. Até o ponto em que foi necessário desmontar as suas tampas, pregadas e coladas desde a construção do órgão e que, “em circunstâncias normais, nunca seriam desmontadas”, diz o organeiro. Foi um trabalho feito com paciência e precisão cirúrgica. O extremo cuidado foi fundamental para reaproveitar todos os componentes de madeira, evitando-se com isso a introdução de madeiras diferentes no órgão.
Finalmente em 24 de novembro de 1985 o órgão foi entregue e inaugurado. Na solenidade de inauguração a participação musical ficou a cargo do organista, maestro Lucas Raposo, que homenageou o Pe. Luiz Gonzaga Boavida apresentando composições próprias para a ocasião; a homenagem ao Pe. Boavida. Aquele momento também foi do Pe. Ézio Rodrigues de Lima CM, organista do Caraça à época do Colégio. Nesta solenidade, Eustáquio Januário Ferreira, prefeito de Santa Bárbara, recebeu do Caraça, a homenagem que lhe foi negada na festa que o MDB, de Tancredo, ensaiou no Santuário do Caraça.
Cada segundo sábado e domingo do mês, o maestro Lucas Raposo, realiza um concerto com o órgão, às vezes com convidados em outros instrumentos. O organeiro Ricardo Clérice “à miude” está no Caraça cuidando do instrumento que sua perícia, habilidade e amor ajudou ressuscitar.