Quando leio em nosso jornal a seção das aves e suas vozes, me pergunto qual o critério para escolher essas três como representantes da imensa família das aves, que razões teve quem propôs essas aí e não outras.
Gosto de todas, mesmo de uma coruja soturníssima como a murucututu (Pulsatrix koeniswaldiana). Uma vez eu falava do lobo-guará aos nossos hóspedes quando comecei a escutar o canto dessa coruja. Dava-me a impressão de que esperava eu terminar as frases mais compridas, para então entrar com seus comentários. Com os canarinhos chapinhas, os canários da terra, é preciso ter muita paciência e boa memória, porque contam todas as suas longas biografiazinhas, suas aventuras, seus planos, suas conquistas mais recentes, tudo isto eles contam numa só frase, rica e saltitante como um colar de contas quando se arrebenta e cai pérola para todo lado, não há como impedir que tudo se espalhe.
Mas os cantores que trago para cantarem nesta nossa festa de estar vivendo uma tarde gloriosa de sol, nuvens fortes mas branquíssimas, os três cantores são o sabiá laranjeira (Turdus rufiventris), o tico-tico (Zonotrichia capensis) e o sem-fim (Tapera naevia), mas é uma pena que não cantam juntos…
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Num poema antigo, comentei que os sabiás se afligem, de madrugada, depois daquelas chuvaradas fortes, com raios e trovões de matar de susto. Na cabecinha deles, passa que a tempestade acabou com muita coisa bonita, da paisagem, das águas correntes, das palmeiras, vai ver que até das pessoas, sobretudo das crianças. E então eles ficam quietos, olhando a paisagem, tentando relembrar como era, no dia anterior. E, com uma memória impressionante, vão desenhando no ar, com sua melodia comprida, as montanhas, especialmente os horizontes, cheios de palmeiras, as montanhas como pouso das nuvens, as cascatas como a alegria da terra, as revoadas das pombas e até os gritos nervosos das maritacas, o voo alto do tucanaçu, aquele bicão amarelo que voa reto, sozinho, levando junto o corpo de penas, as asas ritmadas, o voo reto, batendo as asas e depois indo no impulso. Meu poema era um jeito de agradecer aos sabiás pelo esforço deles, pela tentativa honesta de redesenhar de novo o mundo inteiro, que não falte nem a taturana verde nem a borboleta azul, os patos voando na tarde e o silêncio branco do mundo inteirinho, quando surge a primeira estrela no céu. E minha angústia era a de saber quem iria agora desenhar os sabiás, quem iria reinventá-los, depois das tempestades, daquele vento estranho e da chuva toda molhada e descabelada…
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Já o canto do tico-tico é só para quem tem bom coração e merece. Canto mais simples, só o do outro passarinho, que eu já conto. O canto do tico-tico é para quando a saudade dói no peito da gente, quando a gente quase não aguenta o silêncio e a solidão, é o canto mais desprevenido. Mas basta você estar saindo de viagem, deixando as pessoas que ama, indo para um horizonte novo, para o meio de gente que nem conhece nem sabe se irá amar. E aí, só então, você descobre que não é bem o tico-tico que canta: é a própria solidão, às vezes já diretamente a saudade, elas sim é que cantam aquela frase simples, singela, mais verdadeira que tudo. Você se acostuma com aquela beleza e aí chega o dia 31 de dezembro e o tico-tico não canta mais uma única palavra. Por quê? E dói no coração da gente uma saudade, uma precisão, aí sim ficamos órfãos.
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Já o terceiro solista canta como quem chora, uma alegria que se foi, uma luz que encheu nossa alma, é um canto desconsolado, triste de morrer, uma lágrima pendente, uma saudade sem fim. Ele nem sabe pronunciar saudade, só consegue cantar sem-fim. Não se apressa, pois sabe como são as saudades, a gente não tem culpa, estamos sós porque o mundo inteiro se retirou num adeus sincero ou fingido, mas louco de doído. Se caímos na armadilha, não há escapatória possível. É deixar que ele nos enfie a faca até o fundo do coração, pegando tudo, sem mais surpresa do que saber que o amor é sem-fim. E ficaríamos toda a vida a escutar, sentindo a saudade em toda a força de sua solidão, sabendo que os pais naturais da saudade são o amor e a ausência, ela não é uma filha-da-mãe, como acontece dizer, quando não aguentamos sozinhos…
Padre Lauro Palú, C. M.