Em outubro do ano passado (2017), os Superiores de nossas Províncias da América Latina e do Caribe visitaram o Caraça, num final de dia do encontro que realizavam na Pousada do Engenho. Vieram jantar no Caraça, com a esperança de ver o lobo-guará, cuja fama e cujas lendas já correm o mundo…
No mesmo dia, uma excursão de Ensino Médio trouxera uns cinquenta Alunos, que estavam sentados nos três degraus da porta da igreja. Avisei à moçada que ia falar em espanhol por causa dos nossos Padres, mas que meu castelhano é muito rasteiro, sem complicações, e que entenderiam tudo. Se não, era só fazerem um sinal, perguntando, e eu traduziria. E fui falando, garantindo o ambiente de calma e silêncio em que a chegada do lobo é ainda mais impressionante. O lobo chegou, cauteloso como sempre, pegou um osso com um bocado de carne e foi comer na ponta da escadaria, de onde fica observando se estão por lá seus rivais ou seus inimigos. Rivais são outros lobos com que, uma vez por ano, brigam ferozmente, para ficarem donos do território, maridos da fêmea dominante e pais responsáveis pelos filhotes. Inimigos são os cachorros-do-mato, que vêm comer os ossos e a carne.
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Por isso ficam olhando para o pátio, para ver se vem algum por ali…
Então falei com o lobo o mesmo que em toda noite: “Pode voltar, que não há ninguém por aí”. Só que, sem sentir, falei em espanhol. E ele voltou à bandeja. Na segunda vez, depois de novo bocado, falei-lhe de novo (mas já sabendo o que estava fazendo): “Eu já disse, não há ninguém que ameace você ou sua família. Pode voltar a comer”.
Quando ele voltou em seguida, um dos guias não aguentou: “Mas ele entende tudo? Até em espanhol?” Só fiz meu gesto evidente de concordância…
No começo da semana seguinte, eram duas famílias italianas que estavam vendo o lobo. Foi para a ponta da escadaria e lhe repeti as mesmas frases, mas em italiano. Uma das hóspedes quase gritou: “Não acredito!”
Eu expliquei, lealmente, como sempre faço, mesmo quando falo em português, que o lobo volta não porque eu falei, mas que falei porque sabia que ele iria voltar. É só calcular bem o tempo, que o efeito é mágico! Conto que sei que minha fama nasce disso, como se já não bastasse o lobo-guará com seu fascínio, em cada noite…
O fascínio do escuro
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Para mim, o escuro da noite é a maior razão da admiração, do susto, da alegria, da surpresa, do inesquecível da visita desses bichos grandes na escadaria e no adro da igreja do Caraça. Quando vemos, já chegaram, entraram em nosso mundo, em nosso espaço, quase na nossa conversa. Dali a pouco, já estão sumindo, sumidos, no escuro, na fronteira mágica de cada noite, no limite de nossa imaginação, de nossos mitos, dos medos ancestrais, de nossa capacidade de amar assim a vida, selvagem, silvestre, misteriosa, magnífica, inimaginável, e nossa, ali na nossa frente!
Isso vale para os lobos, já louvados em prosa e verso, musicados pelos artistas, desenhados pelas crianças, virando enfeite nos brincos e nas correntinhas, aquecendo os peitos nas camisetas aventureiras, e levados vivos nas lembranças inesquecíveis, nos sonhos trepidantes, nas invenções inacreditáveis.
E vale também para os outros nossos amigos e fraquentadores do bandejão: as jaratatacas (ou cangambás), durante sete anos, até que os cachorros-do-mato as expulsaram/assustaram/proibiram de vir; depois, eles mesmos, os cachorros-do-mato, uma noite foi um gato-mourisco, e agora, definitivamente, a ANTA, enormona, monumental! Não incluí nessa lista as aves, mas já fotografei 21 espécies beliscando, nos fins de tarde (no horário de verão) ou de manhã (no resto do ano, quando sobrou alguma coisa dos visitantes noturnos).
Com as aves, já não é o escuro, vêm na luz, mas são igualmente admiráveis pela quantidade, pelo carinho com os filhotes, pela paciência com os godelos, pela rapidez da fuga, pela convivência dos gaviões (carcará e carrapateiro) com os sebinhos, os sabiás, os jacus.
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As perguntas que o povo faz: um dia não vai aparecer uma onça, caçando a anta, sabendo que ela está aqui? Espero que nunca venha, até porque as onças não são caseiras, mas seria muito interessante! Crianças e adultos também perguntam: “Você já conseguiu passar a mão no pelo do lobo?” Conto que sim, quando a loba foi operada do tumor enorme que tinha no pescoço: Pelos bastante ásperos, menos duros que as cerdas dos porcos, mas menos lisos e sedosos que nossos cabelos de gente. Quando as doses da anestesia foram acabando, o monitor que nos ajudou a levar o animal numa maca sugeriu outra dose para acalmar o bicho que se agitava e parecia querer levantar-se e talvez assustar-nos, afastar-nos de perto dela. Aí, usei meus superpoderes e falei no tom de voz habitual: “Guará, guarazinho, durma aí”. Ela me olhou, fechou os olhos, entregou-se ao resto da anestesia, sentiu-se entre amigos. Eu me emocionei muito porque naquele ano ainda não trabalhava no Caraça, mas no Rio de Janeiro, de onde vinha com excursões do Colégio. A loba lembrou-se de mim, das minhas visitas, guardou aquele tom de minha voz, me reconheceu, serenou, dormiu entre amigos, “entre os dela”…
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Para as crianças, sempre pergunto: “Sonhou com o lobo?” Digo que, no sonho, podem montar no cangote dele, segurar pelas orelhas como se fossem rédeas e sair no galope. Só no sonho… Despertar a imaginação, acender os olhos de uma criança, ajudar os seus sonhos. .. Êta vida!
Padre Lauro Palú, C.M.