Uma grande descoberta bem debaixo de minhas barbas
O macuquinho-da-várzea (Scytalopus iraiensis) é uma enigmática ave ameaçada de extinção que só foi descrita pela ciência em 1998. Esta ave vive caminhando entre densos emaranhados de capins altos em brejos, sendo dificilmente observada, mas facilmente encontrada pelo seu canto[1]. Alimenta-se principalmente de pequenos insetos, mas sofre com as queimadas e as atividades de pecuária, que torna mais ralos ou inexistentes os adensamentos de capins. Foi descoberta pela primeira vez na várzea do Rio Iraí, região metropolitana de Curitiba, Paraná. Em anos subsequentes, a espécie foi encontrada em outros locais, mas apenas nos estados do Sul do Brasil.
No entanto, em 2003, na companhia de meu colega gaúcho Giovanni Maurício, em uma expedição científica ao Pico do Inficionado, encontramos o macuquinho-da-várzea em um brejo a cerca de 1.800 m de altitude. Conseguimos ver bem o bicho e gravar suas vocalizações. Este foi o primeiro registro da espécie em Minas Gerais e em todo o Sudeste do Brasil. De fato, foi uma grande descoberta, mas que fazia sentido biogeográfico para uma espécie típica de clima ameno, com populações ocorrendo em altitudes mais baixas, no Sul do Brasil, e populações isoladas em altitudes mais elevadas, aqui no Sudeste. Algo do tipo proposto pelo grande naturalista Alexander von Humboldt: a altitude compensa a latitude. Um exemplo clássico e bem conhecido no Brasil é o do pinheiro-do-paraná (Araucaria angustifolia), com um grande núcleo de ocorrência nos estados sulinos e populações em alguns pontos das serras altas do Sudeste, a exemplo da Mantiqueira.
.
Pois bem, tudo fazia muito sentido biogeográfico, até que, dois anos depois, recebi a visita de dois amigos mineiros no Capão da Coruja, no Sumidouro: Santos D’Angelo (do Norte de Minas) e Vitor Torga (do Sul de Minas). Santos acordou cedo e foi até a porteira, nas proximidades do brejo para ver um bentevizinho-de-asa-ferrugínea (Myiozetetes cayanensis), quando ouviu um canto que parecia o do formigueiro-da-serra (Formicivora serrana), mas ininterrupto. De lá da beira da estrada, só vi o Santos gesticulando desesperadamente e gritando para que eu corresse para lá com o gravador. Junto do sumidourense José Cláudio (“Mocotó”), passei os 15 dias seguintes atolado no brejo, até conseguir obter boa documentação da espécie. Era ela mesma e agora a míseros 730 m de altitude, em plena baixada caracense! E nada mais fazia sentido biogeográfico, mas configurava-se como uma das maiores descobertas da biodiversidade regional.
Apesar de ser uma área maravilhosa, o brejo do Sumidouro sofre com os incêndios criminosos, o pisoteio por animais domésticos, a abertura de estradas e a drenagem para ser convertido em pastagem.
.
Por ser uma ave terrícola e que apresenta voo curto e pesado, é possível que o macuquinho-da-várzea tenha baixa capacidade de dispersão entre o brejo do Sumidouro e outras áreas úmidas de nossa região. Além disso, por ser uma espécie intimamente associada aos ambientes brejosos, sua área de distribuição é altamente fragmentada e há indícios de que suas populações já estejam sofrendo declínio, em decorrência da alteração e da destruição de brejos e banhados. Por estes motivos, o macuquinho-da-várzea figura na triste lista vermelha de espécies ameaçadas de extinção.
A presença do macuquinho-da-várzea no brejo do Sumidouro mostra a importância de se preservar esta área, pois, além dele, ali devem ocorrer muitas outras espécies de animais e plantas ainda não catalogadas regionalmente. Assim, estudos mais detalhados sobre a fauna e a flora merecem ser efetuados nesta área, visando o registro de mais espécies raras e ameaçadas de extinção. No entanto, por si só, a presença do macuquinho-da-várzea já faz com que o brejo do Sumidouro mereça ser preservado.
[1] Exemplos de gravações do canto do macuquinho-da-várzea podem ser ouvidos nos ‘sites’:
http://www.xeno-canto.org/ e http://www.wikiaves.com.br/
Foto: M. F. Vasconcelos