Aves do Capão da Coruja: 20 anos de observações na Baixada Caracense
Desde 1989, observo aves no Capão da Coruja, localizado no Sumidouro, Baixada Caracense. No entanto, foi em 1996 que comecei a fazer anotações sistemáticas de tudo o que via e ouvia na mata, nos pastos e no pomar. Isto gerou informações de base para entender como a comunidade de aves modificou-se nestas últimas duas décadas, com a regeneração da mata, cortada na década de 1960 para abastecer as siderúrgicas do Vale do Aço.
Ao longo destes 20 anos, foram registradas 261 espécies de aves no Capão da Coruja, o que representa 70% do total registrado em toda a região (372 espécies), incluindo a RPPN-Santuário do Caraça.
Destas, destacam-se 38 que são endêmicas da Mata Atlântica, isto é, só ocorrem neste domínio morfoclimático. São elas: uru (Odontophorus capueira), saracura-do-mato (Aramides saracura), rabo-branco-pequeno (Phaethornis squalidus), beija-flor-de-fronte-violeta (Thalurania glaucopis), surucuá-variado (Trogon surrucura aurantius), juruva (Baryphthengus ruficapillus), barbudo-rajado (Malacoptila striata), picapauzinho-de-testa-pintada (Veniliornis maculifrons), pica-pau-rei (Campephilus robustus), formigueiro-da-serra (Formicivora serrana), borralhara-assobiadora (Mackenziaena leachii), borralhara (M. severa), papa-taoca-do-sul (Pyriglena leucoptera), trovoada (Drymophila ferruginea), choquinha-de-dorso-vermelho (D. ochropyga), chupa-dente (Conopophaga lineata), macuquinho (Eleoscytalopus indigoticus), macuquinho-da-várzea (Scytalopus iraiensis), arapaçu-rajado (Xiphorhynchus fuscus), barranqueiro-de-olho-branco (Automolus leucophthalmus), joão-botina-da-mata (Phacellodomus erythrophthalmus), pichororé (Synallaxis ruficapilla), pi-puí (S. cinerascens), joão-teneném (S. spixi), arredio-pálido (Cranioleuca pallida), tangarazinho (Ilicura militaris), tangará (Chiroxiphia caudata), flautim (Schiffornis virescens), abre-asa-de-cabeça-cinza (Mionectes rufiventris), teque-teque (Todirostrum poliocephalum), miudinho (Myiornis auricularis), olho-falso (Hemitriccus diops), tachuri-campainha (H. nidipendulus), tesoura-cinzenta (Muscipipra vetula), saíra-douradinha (Tangara cyanoventris), sanhaço-de-encontro-amarelo (T. ornata), saíra-ferrugem (Hemithraupis ruficapilla) e tiê-preto (Tachyphonus coronatus).
No entanto, várias espécies da Mata Atlântica que ocorrem na RPPN-Santuário do Caraça ainda não foram encontradas no Capão da Coruja. Por quê? Talvez porque a mata do Capão da Coruja ainda tenha pouco tempo de regeneração para abrigar espécies mais exigentes, isto é, que requerem habitats preservados por maior tempo. Exemplos seriam o arapaçu-de-garganta-branca (Xiphocolaptes albicollis) e o pavó (Pyroderus scutatus). Além disso, a RPPN-Santuário do Caraça apresenta uma variação de altitude muito mais ampla que o Capão da Coruja, propiciando habitats para várias espécies de aves endêmicas da Mata Atlântica que são restritas a altitudes mais elevadas em nossa região. Exemplos são o beija-flor-rubi (Heliodoxa rubricauda) e a garrincha-chorona (Asthenes moreirae).
Nestes 20 anos, foi possível registrar algumas espécies que não haviam sido observadas no início das amostragens (em 1996), mas que hoje são comumente avistadas na mata do Capão da Coruja, indicando uma melhoria da qualidade ambiental com a regeneração da floresta que vem ocorrendo ao longo das últimas cinco décadas. Um dos exemplos mais emblemáticos, neste caso, é o do gavião-pega-macaco (Spizaetus tyrannus), que nunca tinha sido observado nos nove primeiros anos de amostragem, mas que, a partir de 2005, foi comumente registrado na área. Por ser um predador de topo na cadeia alimentar, esta espécie apresenta uma ampla área de vida e, numa ocasião, visualizei um destes gaviões voando da região da Cascatona (RPPN-Santuário do Caraça), vindo a sobrevoar o espigão do Capão da Coruja e vagando em direção à Serra da Piedade. Estas observações mostram a importância de se preservarem matas além das Unidades de Conservação.
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Fora da mata, o exemplo mais notável de recolonização da região foi do canário-da-terra (Sicalis flaveola), que também não era observado até 2005, mas hoje é uma das aves mais abundantes e comuns nas pastagens e pomares do Capão da Coruja. Isto mostra que a educação ambiental e a fiscalização de atividades clandestinas têm funcionado bem na região, pois antigos moradores haviam comentado que a espécie foi outrora comum, mas a captura ilegal levou-a à extinção local (quando comecei o estudo). Felizmente, esta espécie voltou, e parece que para ficar.
Mas nem toda espécie que entra no levantamento das aves do Capão da Coruja pode ser considerada como motivo de comemoração. Algumas delas são colonizadoras agressivas, aproveitando-se das alterações ambientais – desmatamentos, queimadas, dentre outras – para expandir suas áreas de distribuição geográfica. Não é de se admirar que vários destes invasores da Mata Atlântica da Baixada Caracense sejam oriundos das vegetações abertas e semiabertas do Cerrado e da Caatinga. Exemplos de invasores recentes de nossas pastagens e áreas de plantio são o tiê-caburé (Compsothraupis loricata), registrado a partir de 2007; o periquito-de-encontro-amarelo (Brotogeris chiriri), detectado a partir de 2011; e o corrupião (Icterus jamacaii), observado a partir de 2014. Nas florestas, invasores agressivos recentes foram: o estalador (Corythopis delalandi), a partir de 2014; e o canário-do-mato (Myiothlypis flaveola), que apesar de encontrado pela primeira vez em 1998, foi se tornando cada vez mais abundante na mata ao longo deste período. Em contrapartida, algumas espécies florestais que eram mais comuns, foram se tornando cada vez mais raras na mata, a exemplo da borralhara e da trovoada, ambas endêmicas da Mata Atlântica.
Atualmente, todas as anotações efetuadas nestas duas décadas estão inseridas em um banco de dados com mais de 10.000 registros. Com base neste esforço amostral, arrisco dizer que a avifauna do Capão da Coruja seja a mais bem estudada de uma propriedade rural em todo o estado de Minas Gerais. Este volume de informações será crucial para futuras análises nas modificações da comunidade de aves na região, especialmente levando-se em conta que a mata do Capão da Coruja, ainda conectada à RPPN-Santuário do Caraça, está prestes a se tornar uma ilha florestal isolada pelo avanço das atividades mineradoras em suas adjacências imediatas.
Não apenas as modificações ambientais, incluindo a regeneração de florestas e degradações de áreas próximas causam modificações na dinâmica de aves na Baixada Caracense. Ciclos anuais que podem propiciar maior disponibilidade de alimentos ou outros recursos para estes animais também ocasionam fluxos migratórios de algumas espécies. Além disso, os diversos ciclos das taquaras nativas que ocorrem em nossa região podem atrair várias espécies de aves nômades, que se alimentam de suas sementes, assuntos para as próximas prosas…
Marcelo Ferreira de Vasconcelos